Oi, de novo! Tudo bem?
Mais uma vez, eu, Morrigan “Kami” Ankh (grande fã do cenário de “Demônio, a Queda”), em colaboração com o “Vale das Trevas: da ponte pra cá”, trago mais um pedaço da história desse Anjo Caído / Demônio que acabou de chegar a nossa realidade: TURAL, a Lança das Horas.
Se você está chegando agora, fica sabendo que a proposta é contar sobre o cenário de “Demônio, a Queda”, mas sob a forma de conto. Em cada trecho da história, apresentarei um pouco dos detalhes do cenário, explicando como eles funcionam para a personagem na nova existência que experimenta. Até agora, foram introduzidos os seguintes conceitos do cenário: Nome Verdadeiro, Nome Celestial, Abismo e Corpo Hospedeiro. Para maiores informações e maior compreensão sobre a proposta, por favor, confere o primeiro capítulo desta aventura.
Bora lá?! :)
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LEMBRANÇAS [Paralelas]
Caminhou mancando por algumas quadras, após terminar o cigarro. As roupas estavam em estado deplorável, seu assalto fora realizado por dois viciados de rua usando pedaços de vidro como armas.
Ainda tinha alguns flashes e reflexos. Os apelos de Débora para que levassem a bolsa de uma vez, os olhos dilatados dos dois homens, as expressões violentas de quem só compreende o que quer. Levou a mão a até o local dos golpes, o abdômen estava com a pele lisa, mas suja de sangue, sua mão podia passar pelos farrapos da blusa.
“Estou chamando atenção.” pensou Tural, enquanto tentava esconder-se dos olhos curiosos. “Todos vêem uma mulher em roupas destruídas e ensanguentadas… Eles têm medo… E deveriam mesmo!” - Outro flash, desta vez, Tural percorria os campos de flores de um local do qual não lembrava nome. Os aromas das flores eram quase enebriantes, exagerados, mas aquilo não era obra sua. Cada um deles tinha uma função específica na Criação, um grupo, uma Casa. Cada uma dessas Casas definia o propósito do Anjo, cada Anjo dobrava a realidade conforme a necessidade, os planos do Criador. Cores, padrões, formas, locais, números… As variáveis para a criação de tudo o que se conhecia era ilimitada, pois a vontade do Criador assim o era, os Anjos foram criados para executar um projeto de magnificência, começando desde os primeiros átomos, até a origem dos primeiros humanos.
Tural estava lá, na aurora do Pai de Todos e da Mãe de Todos, Adão e Eva. Ele quis que os dois pudessem desfrutar de todas as coisas que ele mesmo criara, coroados com a benção do Criador e dos Anjos para serem soberanos no grande plano da Criação. Era uma época mais ingênua, mais inocente. Ninguém imaginou que as coisas se perderiam tanto, que a perda seria tão grande.
- A senhora qué ajuda? Qué que eu chame a polícia? - perguntou um senhor de idade que se aproximou alguns metros.
- Ah… Não, obrigada… Eu… Caí. - Tural sabia que a mentira era horrível. Nas memórias de Débora, isso era classificado como uma “mentira deslavada”, dita para fugir o mais depressa da questão importante, mesmo que todos conseguissem ver claramente o quão falsa era.
- A senhora tem certeza? Aqui, deixa que eu te ajudo… - o senhor se aproximou esticando um braço em sua direção.
- Não! Não, precisa! - ele disse de forma alta, se afastando (se defendendo?!) da ajuda.
Foi então que percebeu que estava num terminal de conexões de ônibus. Era tarde, não sabia que horas eram, mas as luzes do terminal estavam acesas, os arredores com estrelas no céu. As pessoas começaram a prestar mais atenção nos dois. Uma espécie de pânico percorreu o corpo de Tural, ou melhor, de Débora. Era uma sensação semelhante a que ela experimentara em seus últimos momentos, oferecendo a bolsa e as compras para os viciados sob as sombras das árvores daquela rua sem ninguém.
Ironias da vida. Ela era a mais apta a sair de casa para ajudar a família durante a quarentena imposta aos cidadãos. Não era grupo de risco, sempre tivera uma saúde boa. Neste dia, a geladeira estava vazia e ela se arrumou para ir ao mercado. Sua velha mãe, Dona Adelaide, vivia na poltrona da sala, com problemas nos joelhos e uma saúde fragilizada. A irmã, sua gêmea, constituíra família cedo, um marido preguiçoso e crianças mal educadas, e a visitava uma vez por semana, fazendo questão de levar todo mundo consigo, um grupo de devoradores de recursos que parasitavam a sogra e avó.
Os parasitas, como Débora os havia secretamente nomeado, viriam cedo no dia seguinte, mas como a velha mãe estava com alguns lapsos de memória ultimamente, ela só avisou Débora nos últimos momentos. Geladeira vazia, casa revirada… Débora certamente não gastaria forças arrumando a casa para aquela horda de selvagens que deixariam as coisas em pior estado ao irem embora, mas poderia comprar algumas coisas para receber os “demoninhos” e ocupar as matracas fofoqueiras da irmã e do marido.
“Ela morreu para deixar a mãe tranquila na poltrona de casa, porque amava sua mãe.” Tural se perdeu nesse pensamento. Ele já experimentara amor e suas outras faces há muito tempo. Vivera os sorrisos e os prantos do amor. Sentira ciúme, inveja, raiva e ódio. Em sua prisão, apenas o ódio permanecera por mais tempo, o sentimento mais intenso, mais puro que podia sobreviver naquele nada infinito e torturante. Enquanto era humilhado por Nepesu e seus outros irmãos, o ódio vinha em ondas, e doía mais, justamente por seu algo que se alimentava de imagens de amor partido. Ele amou seus irmãos com intensidade, lutou ao lado deles, rebelou-se por amor aos humanos, acreditou que nesse amor a ponto de aceitar a rejeição do Criador contanto que os humanos estivessem com ele. E tudo foi perdido. A guerra apodreceu as relações entre os Anjos, entre os humanos, entre todas as estruturas da Criação e o paraíso se corrompeu. Desse sonho tão distante, sobrou apenas a profundidade escura da mágoa, do desespero e do ódio. Seus irmãos e ele só podiam usar uns aos outros na prisão, no Abismo.
A loucura dos gritos dos espíritos do lado de fora da prisão, o afastamento da humanidade e com ela, o afastamento do amor, começaram a gerar o “verme da dúvida”. O Príncipe dos Anjos Caídos, Lúcifer, a Estrela-da-Manhã, não estava entre eles. Tural lembrava de ter visto Lúcifer lutar ao lado dos Caídos, de vê-lo sentado no trono de obsidiana em Gehinnon, primeira cidade. Teriam sido traídos? Será que seu próprio Príncipe teria feito isso? Seria seu castigo maior e, por isso, Lúcifer foi separado dos outros? Seus irmãos começaram a perder a fé na causa e a se voltar uns contra os outros, talvez, porque não havia mais nada para fazer naquela prisão. Enlouquecidos começaram a gerar uma estrutura de poder através do abuso de Anjos considerados mais baixos.
Usavam os Nomes Verdadeiros, a expressão de toda essência de um Anjo, algo que transborda a palavra falada e escrita, ressoando e coincidindo com outras camadas, a existência e a destruição de um Anjo. Um DNA angelical, praticamente, através do qual a posição e função de um Anjo, em toda a Criação, era expressa e assegurada. Ao mesmo tempo, um Nome Verdadeiro também era o grilhão de um Anjo, justamente por ser o que define sua existência, bastava fazer uso desse nome para comandar um Anjo. Todo e qualquer Anjo costumava preferir o uso de seu Nome Celestial, quase um nome social e mais acessível aos humanos também. Tural era o seu Nome Celestial, mas Nepesu fazia questão de rebaixá-lo usando seu Nome Verdadeiro. No Abismo, em sua prisão, Tural viu os mais fortes predarem sobre os mais fracos: Anjos Caídos que detinham o Nome Verdadeiro de outros, usavam isso para sua vantagem, criando uma linha de escravos, usando o Nome Celestial apenas como uma cruel cortesia, após garantir que seus subordinados tivessem entendido quem segurava o chicote naquela relação de poder.
Apressou-se para sair do terminal, retomando a rota para casa. Passou próximo ao local do falecimento de Débora. Um calafrio percorreu sua espinha, alertando-o de seu corpo mortal. Era noite, estava esfriando, suas roupas estavam cheias de rasgos, expondo o corpo. Não tinha mais compras de mercado para levar para casa, não tinha mais documentos, nem carteira, nem telefone. Deslocou-se lentamente pelas quadras que, dadas as circunstâncias, pareciam imensas e intermináveis. Experimentou a respiração ofegante e o cansaço de um corpo sedentário e que acabara de sofrer violência há umas duas horas atrás. Ninguém teria encontrado Débora há tempo, para socorrê-la, de qualquer jeito. Com a quarentena, as pessoas estavam se recolhendo para seus lares cada vez mais cedo. As ruas eram quase desertas, exceto por um outro indivíduo que precisava estar se arriscando. Ele revivia o instante em que se tornara uma única criatura com ela, consumindo tudo o que restava dela, para estar absolutamente no controle. Não era mais apenas o Anjo Caído que acabara de escapar do Abismo, era também a mulher que só recebeu hostilidade de sua própria espécie. Teria sido isso que o levou a alcançar seu corpo? A dor de saber que seus semelhantes não são capazes de respeitar e preferem subjugar, destruir e humilhar o próximo? Nepesu, Leishaiel, Domot’ir, e outros, assim como a família de Débora, eram parasitas que abusavam dos fracos. Seria esse o elo que compartilhavam, essa Ressonância de energia, Anjo e mortal? Ou haveria mais coisas que levaram Tural a se fundir com a personalidade de Débora?
A mandíbula cerrada, a pressão entre os dentes, o calor que veio a sua face. Ele sabia que era ódio, havia muita rancor das coisas nunca ditas em todos esses anos, tanto em sua mente, quanto na mente de Débora, mas era a primeira vez, em muito tempo, que redescobria as manifestações físicas dos sentimentos num corpo. Uma lágrima quente escorreu a face e o corpo parou; a sua frente, o portão baixo de ferro de sua casa. Abriu o portão só para ver as unhas quebradas no dedo cortado, ferimento ganho enquanto tentava se defender da garrafa quebrada. Entrou e subiu os três degraus que levavam à porta principal. Puxou a chave que estava no bolso traseiro da calça e girou a maçaneta. Escutou a televisão ligada, mas viu que a mãe caíra no sono.
“Melhor assim.” pensou “Menos explicações para dar.” andou até o banheiro o mais silenciosamente possível, trancou a porta, recolheu a roupa num canto do chão e ligou o chuveiro no quente. O chão do box ficou rosado com tanto sangue, a pele começou a avermelhar com a temperatura quente da água. Tural chorou, mas não sabia ao certo se as lágrimas eram só suas. Sentou no box contemplando seu corpo, sua hospedeira. Sentiu-se como um escritor que precisa terminar a obra de outro colega de profissão, sem saber qual era o projeto. Só terminou o banho quando percebeu que o vapor de água tornara sua visão do banheiro quase inexistente, exceto pelas pontas enrugadas dos dedos.
Banho tomado, roupas embrulhadas e disfarçadas para ninguém fazer perguntas, elas iriam para o lixo. Acordaria sua mãe para ajudá-la a ir para a cama, iria na delegacia amanhã cedo. Explicaria o ocorrido como “um assalto rápido e sem grandes perdas”, como era a frase que Débora usaria mesmo? “Vão-se os anéis, mas ficam os dedos.”
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- Morrigan (Kami) Ankh
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